O Traquinas, o cão do Pirolito, que herdara esta alcunha do pai, porque era pequeno bebia muitos pirolitos, umas gasosas com um berlinde lá dentro, dizia o simpático senhor, tratamento que o irritava, porque era do tempo da “seven-up”, andava sempre agarrado a nós com os dentes, principalmente quando o nosso dono vinha da praia e nos largava cheios de areia no quintal perto do tanque, vizinho da casota da fera.
Nós já estávamos fartos das suas dentadas, de andarmos à roda, presos pelos cordões, de darmos cabeçadas nos alguidares da roupa, de sermos atirados contra a parede da marquise, de levarmos picadelas dos espinhos das roseiras, que caíam com a sua choradeira.
Uma noite em que ninguém nos recolheu, e que se ouvia a voz zangada do mar, apareceu uma gaivota solitária e esfomeada.
Contamos-lhe a nossa triste história e dissemos-lhe que havia uns restos de peixe no balde do lixo, mas não a podíamos ajudar, a abri-lo, porque o Traquinas acordava e… atirava-se logo a nós com aquelas brincadeiras violentas e sem graça.
Então a gaivota teve uma ideia: encostou-nos ao balde, fixou o meu calcanhar no chão, colocou o do meu irmão sobre a minha biqueira como se fôssemos uns artistas de circo, formando uma coluna. Depois pôs as suas patinhas na outra biqueira, ficou de pé como uma rainha, abriu o balde com o bico, e foi-se servindo!
Passado algum tempo, nós começámos a sentirmo-nos cansados, mas… o pior foi o gato maltez que veio atrás do cheiro a peixe, passou por nós de rabo levantado, fez-me cócegas e… caímos! A gaivota voou com uma cabeça de carapau no bico, a tampa do balde fez um estrondo e o gato maltez ficou todo assanhado!
Estávamos assustados! E… ainda ficámos mais quando o Traquinas saltou da casota como um leão e… atirou-se a nós, enquanto o gato trepava pelo muro, e desaparecia!
O que nos valeu foi a gaivota, que regressou e distraiu o Traquinas, que saltava, saltava e não a apanhava! Mas… depois vingava-se em nós, dando-nos dentadas.
Então a gaivota, que era nossa amiga, conseguiu pegar nos nosso cordões com o bico e… quando o cão nos soltou, voámos e ficámos no arranha-céus, o fio eletríco da outra rua donde nunca mais saímos.
Agora vivemos felizes, porque os passarinhos vêm visitar-nos e cantam para nós os ouvirmos, o sol aquece-nos e a chuva dá-nos banho como uma mãe, o vento dança connosco, a lua conta-nos histórias de encantar, as estrelas cantam cantigas de embalar, as nuvens tapam-nos quando está muito frio, e podemos ver e ouvir tudo sem sermos incomodados, e cumprimentar muitas pessoas, principalmente as crianças que ficam a olhar para trás, e fazem-nos adeus às escondidas.